O núcleo da questão consiste em saber se o ser em formação no ventre da mulher tem, ou não, vida autônoma UMA das razões pelas quais o abortamento consta do elenco das condutas incluídas no Código Penal é a da proteção ao nascituro, ou seja, aquele que vai nascer, desde a concepção. A matéria também tem sido debatida, a respeito da legitimidade do Estado, ao interferir na decisão de abortar, o que se deve, entre nós, à influência da doutrina católica. Ao tratar do assunto é impossível evitar a repetição de certos aspectos colaterais. Exemplo: a decisão exclusiva da gestante ou, sendo casada ou mantendo união estável, se estendida também ao marido ou companheiro. O núcleo da questão consiste em saber, para a biologia e o direito, se o ser em formação no ventre da mulher tem, ou não, vida autônoma. A lei brasileira estabelece que o direito do feto depende de que nasça com vida. Na Espanha, país de sólida formação católica, a discussão compreende outros pormenores. Lá se discute a aprovação de anteprojeto pelo qual a mulher poderá interromper a gravidez, desde que obedecidos certos prazos de gestação. A decisão final para jovens, na casa dos 16/17 anos, será só deles. A manifestação dos pais, sempre no direito espanhol, será exigida para as jovens de 12 a 15 anos, que, todavia, também se manifestarão. Posições religiosas, de oposição ao aborto, serão afastados, quando o juiz aprecie a matéria. Também é internacional o debate sobre os anencéfalos, que vivem algum tempo, embora desprovidos de cérebro. No debate filosófico-jurídico em face do anencéfalo, o progresso da ciência vem modificando a avaliação legal dos efeitos possíveis. Antes a vida do anencéfalo se extinguia em poucos instantes. Novos recursos científicos têm assegurado seu prosseguimento. Todas as diferenças de posição se vinculam à questão preponderante de saber se o direito oficial pode impor limites à decisão do casal ou da mulher, quanto ao prosseguimento da gravidez. No Brasil, esses limites do aborto podem ser afastados, na opinião médica, para salvar a vida da gestante ou, com o consentimento da vítima, na gravidez resultante de estupro (Código Penal, artigo 128). É o limite. Assim se vê que, entre nós, há casos nos quais a interrupção legal da gravidez permite decisão da vítima. Daí a pergunta: por que cabe ao Estado, e não à gestante, resolver a respeito do aborto? Para a fé católica, o abortamento é inaceitável mesmo em caso de estupro. O catolicismo considera o feto, ainda no ventre da mãe, como um ser vivo. O Estado regula as condições nas quais se admite a interrupção também para preservar a saúde pública. Exclui a decisão apenas pelos interessados. Parece razoável, porém, para o mesmo fim, que o Estado amplie a aceitação do aborto fixando, por lei, um certo prazo de gravidez, a contar dos elementos pelos quais a ciência admita que o ser gerado ainda não chegou por inteiro às condições próprias do corpo humano. Nos quadros da convicção de todo o grupo social, a transformação ocorrida nos últimos 50 anos foi firme. Ampliou-se a prática do abortamento para mais além da lei atual e, portanto, excluindo restrições dos direitos civil e penal. Não se chegou a uma posição clara, mas o assunto continua e continuará a ser enfocado pela sua importância jurídica e moral, no Brasil e no exterior. Folha de São Paulo – 26-09-2009
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